LAGARTIA: REBELIÃO #2



 Side Story - Capítulo 2


Comofas caminhou durante noventa e dois segundos dentro do corredor escuro que o levaria até a sala de reuniões. 

Olhar para frente não fazia sentido. Ele jamais poderia ver o fim daquele corredor, que na verdade não levava a lugar nenhum. Olhar pra trás também não era recomendado, porque veria sempre a porta pela qual entrara independente do quanto andasse. 

O fato é que aquilo, ao menos por enquanto, não era uma questão de espaço. Era só o tempo que importava. Mas caminhar enquanto contava os segundos era menos entediante.
Ele era obrigado a esperar até que o dispositivo lhe enviasse para onde deveria ir.
Era assim que funcionava aquele meio de transporte, feito justamente para enganar qualquer um que tentasse invadir uma reunião. Mesmo que um espião lagarto pudesse responder a pergunta corretamente, o que era praticamente impossível, ele atravessaria a porta e simplesmente ficaria entediado após andar tanto sem sair do lugar, daria meia volta e esqueceria aquilo. Ao menos era o que os membros da Rebelião esperavam.
Após noventa e dois segundos, pacientemente aguardados por quem já era familiarizado com o procedimento, o corredor infinito pararia de lhe atormentar, e por breve momento, tudo ao seu redor pareceria se mover, ao mesmo tempo em que seu corpo seria jogado para frente (sem jamais sair do lugar), e aí a pessoa seria transportada para o lugar certo, e estaria vendo a escotilha branca que lhe daria acesso ao local.

Mas Comofas, quando contou até noventa e sete, percebeu que aquilo ainda não havia acontecido.

“Oh, me desculpe.” – Disse o corredor, ecoando por todos os lados numa voz fantasmagórica, mas também bastante inglesa e culta. – “Eu esqueci que você estava aqui.”

“Nem os malditos corredores dão a mínima pra você” – Ecoou a voz do irmão, Aloc, em sua mente, que estava acompanhado com duas modelos e uma garrafa de bebida na imagem mental que Comofas associou a voz.

E então as coisas aconteceram como deveriam, o que era um tanto raro por ali.
Comofas estava de frente para a escotilha, e não num interminável corredor. Ao tocá-la, ela fez seu papel de abrir.

Avançou um tanto sem jeito para dentro da sala oval tomada por paredes brancas. Na janela que percorria a maior parte da sala, a escuridão do universo era acompanhada de pequenos pontos luminosos, e parecia encará-lo como quem não se importa o suficiente com você para lhe dar boas vindas quando você chega a um lugar.

E foi exatamente isso que as pessoas dali fizeram. Algumas até olharam na direção de Comofas, mas a maioria permaneceu sentada, conversando de maneira animada, parecendo não notar sua presença. Só lhe dirigiram certa atenção quando alguém lhe fez um movimento com a mão, para que fechasse a escotilha. E assim o fez.

“Todos sentados, por favorzão.” – Disse Desculpos, que presidia a reunião daquele dia.

Uns poucos que estavam em pé , servindo-se de alguns salgadinhos flutuantes ou pegando mais bebida, rapidamente tomaram seus lugares. Eram assentos estranhos, feitos dos mais diversos materiais, colocados de maneira desajustada ao redor do estande onde estava Desculpos. Parecia que cada um havia trazido seu próprio lugar para sentar, e o decorado da maneira que preferia. Obscenidades e figuras famosas ficavam expostas na forma de gravuras ou até mesmo hologramas naquelas cadeiras, almofadas, mesas e seres pensantes pandimensionais.

Um dos presentes, que Comofas considerava o mais excêntrico dali(o que de fato era algo incrivelmente difícil, tendo em vista que no recinto havia até mesmo um humanóide roxo que considerava-se um câncer superdesenvolvido proveniente das axilas de um semi-deus urbano dos tempos antigos) estava sentado em um avestruz que usava um capacete de motodimensciclismo, esporte banido antes mesmo da chegada dos lagartos.

O Motodimensciclismo era tido como a atividade mais perigosa de todos os tempos e dimensões, segundo o Comitê de Avaliadores Oniscientes Criados Por Avós.

“Mais perigoso do que assistir pornografia infantil dentro da delegacia da policia do pensamento enquanto fuma um cigarro e toma um refrigerante não-light, em horário comercial e sem ser membro de nenhum partido político ou sequer parente de uma autoridade.” – Fora a definição dada no maior dos guias de conhecimento do universo, e é dito que hoje nenhuma cópia pode ser encontrada e sua existência não passa de uma lenda justamente por ter sequer citado esse esporte, de tão perigoso que era.

“Eram duas rodas e infinitas dimensões. Não tinha como dar certo.” – Comentou o inventor e primeiro praticante do esporte, Layferrueller, que se acidentou ao ponto de atropelar todas as suas versões em mais de quinhentas e setenta e setenta meio e três dimensões, pouco antes de ser atropelado por outra versão sua em busca de aventura. Fora um dos poucos seres pensantes que realmente deram maior sentido ao termo “se acidentar”, de maneira cruel e irônica.

A partir daí, a todo praticamente do esporte(também chamado de suicida) foi obrigatório o uso do capacete, que não fazia muita diferença quando se tratava de um veículo que atravessava as barreiras do som, do tempo, do espaço e da luz, mas ao menos fazia alguém lucrar vendendo aquilo.

“E é bem estiloso também.” – Fora o que o avestruz concluíra, enquanto comprava o capacete e o humano que agora montava suas costas numa feira de objetos usados.


Comofas sentou na cadeira vazia perto do avestruz. Ela não tinha nada de especial. Era flutuante, sim, e ao contrário da maioria, limpa e sem adornos. Era só uma cadeira em formato oval, como as que via em sua casa e no trabalho.

Gostava daquilo. Ninguém iria querer aquela cadeira, ao menos ninguém dali. E só aquilo já a fazia parecer bem mais confortável do que era.

“Meus carinhos. Temos que deixarscos bem claro o que será feioje. Mas antes...” – Começou Desculpos, coberto com um sobretudo alaranjado repleto de figuras geométricas aleatórias e um estranho paletó digital aberto por cima dele. Não usava calças, apenas um cueca samba-canção xadrez e botas longas que iam até suas coxas.

Ele levantou o braço direito, e fez a mão se abrir no ar. Então fechou o punho, olhou para baixo, posicionou a cabeça para trás e abriu a boca.

Moveu as pernas, apoiando-se mais em uma do que na outra. A cintura ficou inclinada. Abriu a mão de novo, e moveu os dedos loucamente no ar, como se estivesse balançando-os.

Uma música estranha veio das caixas sonoras no estande. Era um ritmo rápido, pesado. 

“Quase punk.” – Comentou um homem com globos oculares flutuantes ao redor do seu crânio e uma camisa com nome de uma banda qualquer.

“ÉÉÉÉÉE......!!!!!!!!” – Dizia Desculpos, numa posição que ficava mais estranha a cada segundo.

“OooOooooooo.. Ooooh!” – Continuou ele, ainda mais forte, movendo os pés e os braços de uma maneira totalmente diferente da anterior, ainda mais constrangedora.

“Está lá, está quase lá!” – Comentou uma garota sentada, que mordia as unhas nervosamente.

“BIIIRIRBIRBIRIRIBIRIRIRI!!!!!” – Disse ele, ainda mais alto, com as mãos no rosto, corpo curvado, pernas abertas e movendo a cabeça para cima e para baixo.

Uma pessoa ao lado de Comofas derramou uma lágrima.

“SEN... SU....AUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUU AU AU !!!” – Gritou Desculpos, dessa vez batendo palmas.

E então secou o suor do rosto com um pano roxo bordado que guardava no bolso do paletó.
Muita gente ali bateu palmas. Uns ou outros estavam tocados demais pela performance para sequer reagir. Comofas desejou ter uma motodimenscicleta.

“Obrigadão, obrigadinho.” Disse Desculpos, coçando a região pubiana, um gesto de agradecimento comum nas minas de escavação sexual em Bucetópolis XV. – “E agora.. Vamos ao que importinha. Eu poderia falar, falar bastante, muito mesmão. Mas não vou.”

Ele esperou alguns momentos a reação da platéia. Alguém finalmente percebeu o que deveria ser feito e iniciou um “Ooohhh...” de lamentação que foi repetido com entusiasmo por muitos outros.

“É, eu sei, eu sei. Obrigadéssimo. Aliás, obrigaduplo, se me permitem.”

“É claro que permitimos, meu amor!” – Gritou uma das moças, sentadas em uma equação matemática sólida sendo projetada por um holoprodutor, que Comofas reconheceu do seu trabalho. (tanto a equação quanto a moça)

No escritório, ela usava as mesmas roupas padrão de todos os outros funcionários. Mas ali, tinha uma camisa que dizia: “O amor é tão válido quanto dois centuriões de amora” e cintilava em várias cores, uma calça rasgada em muitos pontos, que pareciam abrir e fechar-se a toda hora e sapatos com salto em formato espiral, que se movia infinitamente.

“Oh, então é uma honra tão grandécibéis que eu fico até sem palavrinhas.” – Saudou Desculpos, com uma pirueta dupla.

Comofas já tinha ido em algumas reuniões, mas nunca uma presidida por Desculpos. Lembrou-se que haviam comentado dele em algumas ocasiões, e que o homem era tido como celebridade cult, mas nunca imaginara ter que passar por algo do tipo.

Queria planos. Queria cálculos. Queria ações. Queria vingança. Queria uma maldita vagabunda de sete tetas e, quem sabe, dois pincéis, chupando seu pênis naquele exato momento. 

“O que?!” – Assustou-se ele, ao querer aquilo.

“Ah, me desculpe, me desculpe.” – Disse uma voz estranha na sua cabeça. É que nós, quase-semi-deuses, temos elos telepáticos e funções cerebrais diferentes das de vocês humanos. Quando entramos em contato com agentes exteriores que carregam consciência consigo, acontecem algumas mudanças em nossas ondas cerebrais, que acabam extrapolando através do tempo. Acabei de vir do futuro, com um pouco da fumaça. Mas não se preocupe, já estou voltando. Desculpe a inconveniência.”

E de repente a voz e as idéias pervertidas foram embora, tão subitamente quanto haviam aparecido.

Comofas estranhou, mas imaginou que em breve aquilo deveria fazer sentido. 
Eventualmente, tudo faria. Era por isso que continuava comparecendo aquelas reuniões, era por isso que suportava aquelas pessoas.

Fora ele um dos que projetaram aquela sala. Os lagartos haviam ordenado os cálculos de orçamento para uma estação de propagação de neuroinformação que ficasse na órbita de Mathematykka, e ele alguns outros membros da rebelião conseguiram provar matematicamente que um compartimento para combustível e outro para captação de energia solar na verdade dariam três lugares distintos agrupados ao fundo da estação. E então criaram a sala de reuniões no terceiro lugar, ao qual apenas eles teriam acesso, com um sistema rudimentar de teleporte que não fosse identificado pelos rastreadores lagárticos.

Estavam dentro de uma estação dos lagartos, planejando o fim de seu império, e ninguém desconfiava disso.


Ninguém a não ser toda a equipe de espionagem lagártica que cuidava do planeta, é claro.

Um comentário:

  1. Isso está sendo muito genial, baixei o primeiro episódio da nova temporada do morto andando e não consigo assistir por causa disso.

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