LAGARTIA: REBELIÃO #6


 Side Story - Capítulo 6


Comofas se sentia feliz como nunca antes. Melhor do que quando convenceu os circuitos da estudante Borgtrônica a levá-lo para a cama, melhor do que quando finalmente se mudou para longe do irmão que sempre o atormentava e o desmerecia, melhor até mesmo do que quando foi aceito no Kalkulodruum, a grande central de estudos numéricos em Mathemattyka, quando o planeta ainda não havia sido dominado pelos Lagartos, como o resto da galáxia.


Mas os lagartos não importavam mais. Seriam derrotados, e ele sabia como. Durante o processo das mentes fundidas pelo Consciêncigarro, as idéias e o plano – formulado pelo finado grupo de cientistas do qual Yurlen fazia parte – tudo lhe foi explicado, mas só agora, após ele dar algum tempo para acostumar a idéia em sua mente, é que ele entendia de fato.

A salvação da humanidade estava em um hamster.

O sistema MLH, Macro Loop Hamster, era algo tão simples quanto impossível, e justamente por causa disso extremamente provável. A tecnologia para viagem no tempo sempre fora coisa de ficção cientifica, e Comofas havia aprendido desde pequeno que, caso viagem no tempo fosse realmente possível, alguma versão dele do futuro já teria voltado pra lhe dizer isso. 

Mas havia um modo. Um modo contido. Eles não iriam ao passado, não alterariam a história.. 
Mas poderiam criar um futuro livre para toda a humanidade.

Funcionaria assim: Um aparelho que gravava o tempo, como alguém faria com seu programa favorito, mas funcionaria com algo real e orgânico. O aparelho, que formava um campo cronológico ao redor daquilo que deveria ser “gravado”, simplesmente pegava essa coisa – no caso um hamster, já que ratos sofrem nas mãos de cientistas desde que a ciência existe – e gravaria ela por um pequeno período de tempo. Não muito, lhe foi explicado. O aparelho não podia gravar mais do que, talvez, três segundos, mas não importava.

O que ocorre dentro daquele campo cronológico gravado por ele poderia, em seguida, ser revertido para seu inicio. Ele “rebobinaria”(como os anciões faziam com fitas de vídeo) a ação, e ela retornaria ao seu começo. Com aquilo gravado, poderia ir do ponto A ao B, e depois do B ao A, e repetir o processo infinitamente.

Até aí, tudo bem. Era algo um tanto quanto genial, mas não ajudaria em nada a Rebelião. Gravar 3 segundos de um acontecimento, para que ele pudesse ocorrer seguidamente para sempre? “Talvez possa ser usado em casos de ejaculação precoce” – havia pensado uma das mentes conectadas no brainstorm do Consciêncigarro, durante a explicação.

Só que o hamster faria a diferença. Nesses três segundos, o animal se moveria em uma roda. Uma roda simples, nas quais aqueles animais costumavam gostar de correr. E o aparelho gravaria isso, aquele breve momento em que ela giraria uma ou duas vezes, com a movimentação do hamster. E depois rebobinaria o acontecimento, faria o rato se movimentar ao contrário, e conseqüentemente a girar a roda também, no sentido oposto.

E aí isso aconteceria de novo. E de novo. E de novo. E para todo o sempre, o rato daria seus passos na roda, voltaria para o ponto inicial e andaria de novo. A energia gasta em sua movimentação era retornada com a volta ao tempo, e ele a gastaria andando de novo. E enquanto isso, todas as movimentações da roda, fosse para que lado fosse, gerariam energia. Era o ciclo perfeito e paradoxal, e a energia seria infinita.

Em outros tempos, Comofas se perguntaria como diabos a energia seria transmitida de dentro da esfera cronológica e para fora dela, e como o aparelho de gravação temporal seria alimentado. Mas agora ele tinha certeza de que havia algum motivo para aquilo tudo, por mais insano que fosse.

Yurlen havia lhe explicado a verdade sobre todas as coisas, o segredo da realidade em que viviam, que fora moldada não por deuses, mas por virgens frustrados do passado. Em algum lugar um rosto espinhento, narigudo, com orelhas grandes e com óculos de lente grossa, sorria.

E Comofas também.

“Foi realmente genial.” – Disse Telefone, sobre o assunto, após o beijo, as explicações e o longo silêncio que se seguiu. Era quase como se ela se sentisse um tanto desconfortada.
“É uma pena que todos os outros tenham morrido para trazer isso a tona.” – Comentou Yurlen, amargamente.

“Realmente, isso é estranho. As drogas deveriam ser recreativas, não fornecidas em doses que pudessem matá-los. Nós sabíamos que os cientistas não estavam acostumados com essas substancias. Queríamos idéias, não matança. Desculpos foi o responsável pela entrega. Devemos falar com ele.” – Comentou Telefone.

Comofas não queria saber de cientistas mortos, de drogas ou de qualquer outra coisa. Ele queria aproveitar o conhecimento que tinha agora, e a chance que sempre teve, mas nunca soube. Ele queria beijar Telefone como via os lagartos fazendo entre si nos neurofilmes românticos, queria sentir seus cabelos-tentáculos acariciando seu rosto, queria passar horas e horas conversando com ela, amando-a e sentindo seu perfume. Mas mais que tudo isso, queria vê-la pelada imediatamente e transar feito um filho da puta. Podia ser ali mesmo. O banheiro estava lotado – algo a respeito de um cadáver e a multidão que havia ido vê-lo – mas ele próprio havia ajudado a projetar aquela sala de reuniões, e encontraria um lugar vazio para isso.

“Continuamos isso depois. Obrigado por tudo, Yurlen.” – Disse ele apressadamente, e puxou o braço de Telefone.

Ela se manteve estática.

“Vamos.. Eu quero.. erm.. falar com você.” – Disse ele. Aproximou-se dela, e tentou beijá-la novamente.

Ela virou o rosto. Não só isso, como também afastou a cabeça, quase como se tivesse nojo dele. E realmente parecia estar.

“O que foi?” – Perguntou Comofas. Ele não entendia. A realidade havia sido alterada para que pessoas como ele fossem sexualmente e romanticamente atraentes para garotas bonitas, contra todas as estatísticas. Se ele soubesse disso antes, não teria que apelar para simuladores de sexo e pornografia holográfica em suas noites de fim de semana. Mas agora ele sabia, e pretendia aproveitar ao máximo.

Telefone pareceu um tanto chateada com aquilo tudo. “Outra hora.” – Disse ela, levantou-se apressadamente, e na breve olhada que deu a ele, pareceu demonstrar nojo.

“Aí que está.” – Disse Yurlen. Tinha um sorriso debochado que quase parecia pedir desculpas. – “Esse negócio todo da realidade ser alterada.. Bem, ele para de funcionar para você a partir do momento em que você toma consciência dele.”

“O que?”

“Eu não sei direito como funciona, também. Pode ser a realidade se defendendo das alterações que fizeram nela, ou uma linha de código colocada pelos próprios alteradores.. Ou pode ser simplesmente porque era bom demais pra ser verdade, e nada é perfeito. Não sei. O que importa é que, se você sabe que a realidade está alterada, e que esse código especifico foi colocado nela..  Bem, ele para de funcionar. Ao menos para você.”

Comofas sentiu seu mundo cair tão rápido quanto havia sido levantado. Ele sentiu-se tonto, sem forças, sem ar.

“Por.. Por que? Por que você me contou isso?”

“Porque eu gosto de Telefone. E não quero que ela fique com você por causa de uma maldita coisa que eu descobri, sem querer. Se fosse antes, teríamos as mesmas chances com ela. Mas quando eu abri o disquete no laboratório e descobri sobre o segredo da realidade e também sobre o sistema MLH, eu também pensei como você. Finalmente tive auto-estima suficiente para tentar tomar iniciativa com as mulheres que eu considerava fora do meu padrão, e a primeira coisa que fiz foi ligar para ela. Ela me rejeitou de forma ríspida. Eu estranhei. Não fazia sentido. Liguei para outra garota, uma conhecida. Nada. Liguei para uma ex-namorada. Ela começou a vomitar no instante em que eu disse que sentia saudades dela. 

Tentei outras, dezenas delas, e as que já estiveram comigo simplesmente pareciam sentir repulsa até na idéia de sairmos de novo, e as outras ou riam ou desligavam na minha cara. Entendi que o encanto que eu nunca soube ter havia acabado no momento em que eu o descobri. E testei para ver se com os outros era assim também. Quando descobri que era.. Bem, me desculpe Comofas, não tenho nada contra você, tirando o fato de ser um cara aparentemente sem graça. Mas se eu não posso me aproveitar disso.. Ninguém mais vai.”

A voz de Yurlen estava repleta de emoção e amargura. Ali estava um homem que só deu valor a algo quando perdeu aquilo. E mesmo o fato de ter descoberto um jeito de vencer os lagartos não parecia ser suficiente para tapar buraco deixado pela perda.

“O que.. o que você quer dizer com isso?” – Comofas mal conseguia falar.

“Assim que os lagartos forem exterminados.. Eu usarei o sistema de neurotransmissão galáctica deles, que afeta todas as mentes e reprodutores conectados.. Para transmitir essa informação. Todos conhecerão a verdade do universo, e pararão de se beneficiar dela no mesmo momento.  ”

Ele levantou e foi embora, deixando Comofas sozinho e perplexo.







Em sua mente, uma voz falou:

“Ei, pense pelo lado bom. Pelo menos você beijou ela.”

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