Fosse a vida de Comofas uma interminável seqüência de situações ruins, teria sido a moça do biquíni quem sugaria sua consciência a partir da fumaça e reintroduziria no seu organismo, na forma de um beijo. Mas aquele não era o caso. Fora Telefone quem se aproximara, e fizera isso.
Comofas retornou ao seu corpo, e a primeira coisa que sentiu foram os lábios da garota, a qual sempre tivera uma queda por, tocando os seus.
É claro que, quando instintivamente, tentara retribuir o suposto beijo, colocando a língua dentro da boca da moça, ela se afastara, assustada.
“Oh.. Desculpe.” – Disse ele, constrangido.
“Não tem problema. Você está bem?” – Respondeu ela, e também parecia um tanto constrangida, o que lhe era estranho, pois já esperava um tapa. Para ele, valeria a pena.
“Estou.. Estou sim.”
“Pessoas, por favor, vamos manter o foco. Tenho certeza que todos estão preocupados com o Senhor Comoefaço, mas o tempo é curto e precisamos começar os preparativos em breve.” – Disse Ergos Flakode, um dos lideres da Rebelião, homem de meia-idade e cabelos grisalhos, que se vestia como se ainda fosse jovem e tinha uma paixão secreta por Telefone.
“Ei! Tem alguém morto no banheiro!” - Gritou um jovem entusiasta de xilogravura qualquer, que havia pensado em dar uma cagadinha no banheiro enquanto todos estavam preocupados com o idiota que havia fumado demais e literalmente perdido a consciência.
Todos foram ver o ocorrido, já retirando seus celulares do bolso para gravar a situação, menos Comofas, Telefone e Yurlen, que já estava cansado de ver cadáveres.
“Deve ter sido sensacional.. Sua consciência ficou sozinha, fora do seu corpo, por um bom tempo. Lembra de alguma coisa especial? Entrou em contato com algum tipo de ser superior?”
“Ora...” – pensou Comofas, e então percebeu que não sabia o que responder. Precisava impressionar a garota.
Aquela era sua chance. – “.. na verdade, foi tudo um plano extremamente elaborado para conseguir um beijo seu.” – disse ele.
No entanto, a idéia de dizer isso fora implantada em sua mente pelo Quase-Semi-Deus do local, que estava um tanto arrependido de ter, anteriormente, sob os efeitos do Consciêncigarro, viajado alguns segundos no tempo e invadido os pensamentos de Comofas, e portanto resolvera lhe dar a resposta para a pergunta, na forma de um flerte, mesmo que não muito bom. Considerava isso um constrangimento menor do que qualquer coisa que o próprio Comofas poderia dizer.
Telefone riu baixinho, e ficou vermelha. Tudo em sua expressão mostrava que ela estava envergonhada, e não com algum tipo de repulsa pelo rapaz. Ele não entendia isso.
“Não fique tão surpreso, Comofas. Você causa esse efeito nas garotas, por incrível que pareça.” – Disse Yurlen, levantando-se e aproximando de ambos. Ele vestia um jaleco branco típico de cientistas que gostam de mostrar que são cientistas.
Comofas conhecia Yurlen de vista, mas ambos não eram nem de longe amigos.
Parecia que Yurlen compartilhava, em algum grau, a mesma sensação de repulsa pelos membros da rebelião que Comofas tinha, e ambos eram até normais para o padrão do local, embora Yurlen fosse mais.. diferente do que Comofas. Enquanto um vestia-se e agia como sempre fizera, o outro de fato costumava tentar parecer sempre um tanto quanto impressionante, as vezes até mesmo atribuindo criações próprias a sua vestimenta padrão, como na vez que colocara um capacete cibernético de visão prolongada, que permitia com que visse e identificasse vários tipos de freqüências e ondas.
Na verdade, ele tanto queria impressionar garotas quanto queria vê-las nuas, com a aparelhagem de raio-x embutida na maioria de seus apetrechos.
“Como?” – Respondeu Comofas, e ao fazê-lo percebeu que havia acabado de falar a maior parte do próprio nome.
“É isso mesmo. As garotas gostam de você Comofas. Não me diga que nunca percebeu isso?”
E então ele finalmente percebeu.
De fato, notara que era olhado pelas garotas, principalmente nas reuniões. Sempre achara que era pelo fato de não estar trajado de forma adequada, ou de ser um tanto quanto estranho para os padrões deles, ou até mesmo devido a alguma feiúra extrema... mas e se não fosse o caso?
Ele então olhou na direção da multidão de rebeldes que havia corrido até o banheiro para ver o homem morto, e notou que não uma, nem a maioria, mas sim TODAS as mulheres lhe davam olhadas, algumas mais escondidas que as outras, mas todas em sua direção. Umas pareciam irritadas com o fato de Telefone estar ali com ele, outras decepcionadas e curiosas.
A essa altura, a própria Telefone já não conseguia se conter, e revelou-lhe:
“É verdade.”
O mundo de Comofas caiu. Só conseguia pensar em tantas oportunidades que havia perdido, a na falta de sentido daquilo. Então, maravilha, não era um repelente de garotas como sempre achara que fosse, mas isso.. isso era um exagero. Ele SABIA que não tinha nada demais. Era só um matemático qualquer, que não se cuidava mais que o necessário e não possuía sendo algum de estética. Diabos, sequer sabia conversar direito com uma garota.
“Como?” – Repetiu ele. Feliz, impressionado e envergonhado ao mesmo tempo.
Yurlen respirou fundo. Tinha um sorriso no rosto, mas algo em sua expressão lhe dava um ar extremamente cansado. Olhou Comofas nos olhos e então falou.
“Eu sei que não faz sentido. Muita coisa não faz. Essa é a regra da nossa realidade, por mais estranho que pareça... Coisas aconteceram comigo nos últimos dias, e eu herdei todo o conhecimento dos cientistas que trabalhavam comigo. Acabei descobrindo o segredo da existência, e também um jeito de derrotar os lagartos. Mas uma coisa de cada vez, deixe-me explicar:
Muito tempo atrás, homens das ciências, como eu e você, andavam pelo mundo. Bem, na verdade eles mais ficavam trancados na frente de seus computadores do que qualquer outra coisa, mas você entendeu. Esses homens, que dedicavam as suas vidas aos estudos, aos cálculos, teorias... eles sofriam de um mal terrível:
Por passarem tanto tempo focando suas habilidades nisso, não sabiam interagir direito com as pessoas. Isso geralmente era contornado pela cerveja e por conhecerem outros como eles, com os mesmos gostos e interesses, com as quais pudesse conversar livremente.
Ainda assim, as garotas os apavoravam. Digo, até havia mulheres nesses meios científicos e virtuais que eles freqüentavam, mas ainda assim, a maioria delas mal se comparava com as beldades que andavam por aí, que se interessavam em coisas que esses cientistas não conheciam ou sequer entendiam.
Eles não sabiam lidar com elas, agradá-las e, francamente, tinham até medo delas.
Quando falavam com uma – isso quando conseguiam falar – acabavam sendo entediantes ou simplesmente chatos. Nenhuma garota ficava impressionada pela quantidade de linhas de programação que alguém havia escrito naquela semana, ou pela forma como havia desbancado alguma teoria anterior sobre buracos de minhoca.
Ao menos nenhuma garota bonita.
E nessa frustração toda, um circulo vicioso se formava, com esses homens inteligentes (mas que só usavam sua inteligência nas ciências consideradas entediantes) cada vez mais distantes da realidade. Para não sofrer decepções e humilhação, trancavam-se ainda mais em seus mundinhos. Quando não estavam trabalhando nem estudando, jogavam jogos virtuais, formavam grupos ainda maiores de pessoas que compartilhavam do mesmo sofrimento..
Parecia que aquilo jamais teria fim.
Até que surgira um homem disposto a mudar aquilo.
Ele era o pior deles. Seu nome era Slandus Forevalon, e ele desde pequeno soubera que jamais teria uma namorada. Tinha as melhores notas em todas as matérias, foi o aluno mais jovem a se formar em Harvard, antes dela ser comprada por uma rede de fast-food e se tornar a Faculdade da Galere, cursou diversos cursos e sempre foi muitíssimo aclamado no meio acadêmico.Ainda assim, era um completo perdedor em relação a mulheres. E feio pra caralho, também. Tão feio que nem o fato de ter bastante dinheiro resolvia isso.
Atormentado por esse pensamento, como muitos outros, teria passado o resto da vida tornando-se obeso e solitário, eventualmente adquirindo um travesseiro com uma figura feminina estampada(veja bem, naquela época não existiam robôs sexuais e nem sexo holográfico), se masturbando para animação japonesa e morrendo sozinho, provavelmente enquanto online em algum jogo.
Mas ele resolveu dedicar sua vida para mudar a dos outros. Iria lutar contra isso. Contra a própria realidade.
Uniu-se a um grande grupo de cientistas brilhantes, que compartilhavam do mesmo fardo, e juntando uma enorme verba, criou aquela que fora provavelmente a maior máquina da história da humanidade:
O Alterador de Realidade.
Veja bem. Não eram só as garotas. Esses homens solitários, movidos pela falta de sexo e afeição, viviam suas vidas em mundos fictícios. Desde pequenos, a maioria deles sonhava com coisas que não poderiam ter. A realidade, para eles, era extremamente entediante, e seus sonhos, inalcançáveis. Eles queriam viver o que viam em filmes, livros e jogos. Queriam um mundo onde pudessem voar, lutar contra ameaças intergaláticas, salvar princesas..
E Slandus os reuniu, com a promessa de que o Alterador de Realidade iria mudar tudo isso.
Ele iria tornar o impossível provável.
Naquela época, ciência já havia perdido boa parte do seu glamour fazia algum tempo. Doenças já haviam sido curadas, problemas sociais resolvidos, meteoros aniquilados...
Tudo o que era possível, havia sido feito. E até mesmo o que tempos atrás não era sequer considerado possível, também.
O tempo funciona como se sua principal função fosse destruir conceitos. A cada tantos anos, o que antes era improvável ou impossível, se torna exatamente o contrário.
Ainda assim, não era o suficiente, não para eles.
Eles queriam mudar as coisas na sua origem.
O Alterador de Realidade é algo que eu só posso imaginar como abstrato.. Sequer consigo compreender como uma maquina dessas se fez possível . Provavelmente, a própria existência dela seja fruto dela mesma, a partir de que, em algum momento, após sua criação, ela tenha tido efeito também no passado, tornando possível sua própria criação.
O que posso dizer, de modo simples e baseado em pura teoria, é que essa maquina lidava com as leis que regem nossas existências como se fossem linhas de programação, e que Slandus e seus companheiros decidiram mudar certas variáveis no código fonte da realidade.
Foi naquele momento que tudo se tornou possível.
Não mais a humanidade estaria presa ao concebível, pois tudo então o seria. As possibilidades seriam infinitas. Qualquer coisa seria possível. Até mesmo um Império Lagarto alienígena dominar a galáxia.
E foi durante essa mudança que os cientistas, que a vida toda compartilharam da mesma frustração, resolveram adicionar também uma seqüência de código na reprogramação da realidade, uma bem simples, mas que mudaria tudo para eles:
IF 'nerd' == 'inteligente' OR 'cientista' OR 'perdedor' THEN
sex appeal == 'female interest' + 1;
IF 'sex appeal' > 0 THEN
status == atraente para fêmeas;
ENDIF
ELSE; FUCK OFF.
ENDIF
E é por isso que as coisas são como são. É por isso que vivemos assim, que tantas coisas absurdas acontecem, por isso que pessoas como você e eu fazemos sucesso com as garotas e por isso que um hamster vai salvar toda a raça humana, pelo sistema MLH. “
Yurlen terminou de falar, e parecia sem fôlego. Olhava para Comofas esperando algum tipo de reação, apreensivo.
“Eu acho que nunca ouvi alguém falar tanto quanto você de uma vez só.” – Disse Comofas, por fim.
“Mas você conseguiu entender pelo menos alguma parte do que eu tentei explicar?”
Comofas sorriu.
“É claro que sim. Eu entendi tudo. Sou um cientista, meu caro.”
E a partir daquele conhecimento, ambos compartilhavam da maior verdade de todas, e sabiam que tudo acabaria bem no final, com ou sem os lagartos.
Porque a própria realidade estava do seu lado, ao menos em relação as garotas.
De que importava o resto?
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